60º Congresso Brasileiro de Cirurgia Plástica

Dados do Trabalho


Título

LINFANGITE E FASCEITE NECROTIZANTE SECUNDARIA: ABORDAGEM CIRURGICA PRIMARIA E ENXERTIA DE PELE – RELATO DE CASO E REVISAO DE LITERATURA

Resumo

A pele humana é composta, basicamente, por duas camadas: derme e epiderme, sendo a proteção do organismo sua principal função, de modo a funcionar como barreira física para agentes externos e para evitar perdas intrínsecas (especialmente de água). Possui, ainda, outras funções decorrentes dos anexos cutâneos, como manutenção da temperatura corporal e auxílio na proteção imunológica do indivíduo.
Quando essa barreira é transpassada, diversas patologias infecciosas podem se desenvolver. Algumas dessas patologias, muito prevalentes e que podem levar a uma alta morbimortalidade são as linfangites, como a erisipela e a celulite, podendo evoluir, em casos mais graves, para infecção da tecidos mais profundos como a fáscia muscular, quadro denominado de fasceíte necrotizante.
Neste relato, um paciente jovem, com quadro de celulite de membro inferior que evoluiu com choque séptico de foco cutâneo e fasceíte necrotizante, assim como a técnica cirúrgica empregada para desbridamento primário e posterior reconstrução com enxerto de pele parcial com resultado favorável.
A abordagem multidisciplinar médica em conjunto com a equipe de enfermagem e comissão de curativos é fundamental para a otimização do cuidado com feridas complexas e reinserção do indivíduo no mercado de trabalho.
A evolução desfavorável das linfangites deve ser premeditada e tratada de forma imediata, muitas vezes envolvendo o tratamento cirúrgico, onde um desbridamento extenso envolvendo toda a espessura da lesão não deve ser postergado.

Introdução

A pele humana é composta, basicamente, por duas camadas: derme e epiderme, sendo a proteção do organismo sua principal função, de modo a funcionar como barreira física para agentes externos e para evitar perdas intrínsecas (especialmente de água). Possui, ainda, outras funções decorrentes dos anexos cutâneos, como manutenção da temperatura corporal e auxílio na proteção imunológica do indivíduo.1,2
Quando essa barreira é transpassada, diversas patologias infecciosas podem se desenvolver. Algumas dessas patologias, muito prevalentes e que podem levar a uma alta morbimortalidade são as linfangites, como a erisipela e a celulite, podendo evoluir, em casos mais graves, para infecção da tecidos mais profundos como a fáscia muscular, quadro denominado de fasceíte necrotizante.
A erisipela trata-se da infecção bacteriana da derme, acometendo vasos linfático, sem, no entanto, acometer o tecido subcutâneo. Quando isto ocorre, passa a tratar-se de um caso de celulite. Diversos agentes etiológicos podem ocasionar estes quadros infecciosos para ambas as infecções, sendo classicamente descritos os Streptococcus sp. e Staphylococcus aureus.3-5
Clinicamente, os pacientes apresentam-se com sinais e sintomas locais, como eritema progressivo, hiperemia e edema. A erisipela e a celulite podem ser diferenciadas ao observar-se as bordas da lesão, onde, na celulite, observa-se bordas mal delimitadas devido a profundidade da lesão. Em quadros graves, podem surgir lesões bolhosas, purulentas e/ou necróticas, com ou sem formação de abcessos. Associado aos sinais locais, o paciente pode se apresentar com sinais e sintomas sistêmicos, como febre, mal-estar, calafrios e náuseas. Laboratorialmente, as principais alterações mais comumente vistas são a leucocitose e a elevação de marcadores inflamatórios como a proteína C reativa (PCR).3-5
Um importante diagnostico diferencial é a fasceíte necrotizante, devendo a equipe de saúde estar sempre alerta para um rápido diagnóstico devido sua elevada morbimortalidade. Essa patologia se dá, via de regra, por infecção polimicrobiana secundária, que acomete a pele, tecido subcutâneo e fáscia muscular, levando a importante resposta inflamatória local e sistêmica, além de trombose da microcirculação local.6-8 Devido à sua rápida progressão, seu diagnóstico, tratamento clínico e cirúrgico devem ser iniciados mais breve possível.9,10 O principal sinal de alarme para essa patologia é o quadro álgico importante, associado a sinais infecciosos locais, que podem evoluir rapidamente para sepse.6,7,8,11
O tratamento inicial das linfangites se dá com antibioticoterapia, principalmente com beta-lactâmicos ou cefalosporinas de primeira geração, associado a repouso e elevação dos membros inferiores. Em casos graves, a antibioticoterapia pode ser mais agressiva, com uso de medicações como vancomicina ou linezolida.3 Caso ocorra trombose associada, deve-se empregar terapia anticoagulante associado à antibioticoterapia.12 Áreas de necrose ou abcessos, devem ser prontamente tratadas a partir do desbridamento cirúrgico dos tecidos desvitalizados e curativos.
O desbridamento cirúrgico consiste na retirada mecânica de áreas de necrose e tecidos desvitalizados, com objetivo de tornar o leito da ferida limpo, apto a granular e receber tratamento reconstrutivo, além de remover grande parte da carga bacteriana local e remover o biofilme formado. Deve-se retirar todo o tecido desvitalizado até que se obtenha um leito de ferida vivaz e bem perfundido.8,13
Após resolução do quadro infeccioso, apresentando-se o paciente com lesões abertas, podem ser empregadas técnicas de reconstrução de pele: fechamento primário, enxerto de pele de espessura parcial (EPEP), enxerto de pele de espessura total (EPET) e retalhos cutâneos, visando acelerar o processo cicatricial local.2
O fechamento primário de uma lesão consiste no reavivamento, sutura e aproximação das bordas de uma ferida, devendo esta estar saudável, com completa resolução da infecção, com boa permeabilidade capilar e livre de tensão. No entanto, esta técnica apresenta importantes limitações e geralmente só é utilizada em pequenas feridas.
A enxertia consiste na transferência de pele em sua espessura parcial ou total para o leito da ferida, sem a manutenção de sua irrigação por um pedículo vascular. Para que haja sucesso nesta técnica, o leito receptor deve estar com adequado suprimento sanguíneo e sem qualquer sinal infeccioso, pois sua nutrição se dá por difusão.13
Por fim, pode-se utilizar de retalhos para cobertura do leito de lesões, podendo estes serem constituídos por pele, subcutâneo e músculos, ligados à área doadora por pedículo vascular. Suas maiores limitações são o arco de rotação do pedículo e necessidade de área receptora próximo da doadora.2,13
Para definição da melhor técnica de reconstrução, devem ser levados em conta diversos fatores, sendo os principais: extensão da área a ser coberta, profundidade da lesão, exposição de planos profundos (óssea e tendínea), possibilidade de aproximação de bordas livre de tensão e disponibilidade de área doadora saudável para enxertia.13

Objetivo


Relatar o caso de um paciente jovem, com quadro de celulite de membro inferior que evoluiu com choque séptico de foco cutâneo e fasceíte necrotizante, assim como a técnica cirúrgica empregada para desbridamento primário e posterior reconstrução com enxerto de pele parcial.



























































































Método

Através de revisão sistemática de prontuário e de literatura disponível.

Resultado

Paciente R.G.M, 39 anos, deu entrada no serviço de emergência de um hospital terciário de referência, com histórico de queda da própria altura há seis dias, evoluindo com edema, eritema e bolhas que se estendiam por face posterior e lateral de coxa e perna direita, associado a diarreia, tosse, adinamia e hipotensão.
Na admissão, apresentava-se prostrado, com rebaixamento do nível de consciência e insuficiência respiratória aguda, sendo aventada hipótese diagnostica de sepse de foco cutâneo devido erisipela bolhosa. Como antecedentes pessoais, apresentava etilismo e drogadição. Na admissão, foram iniciados medidas para choque séptico refratário, com uso de drogas vasoativas, antibioticoterapia com cefepime e clindamicina e cuidados em unidade de terapia intensiva (UTI).
Após 48h de antibioticoterapia endovenosa, diante da persistência da febre, foi realizada troca da terapêutica antimicrobiana para tazobactam, piperacilina e linezolida, apresentando, então, melhora importante do quadro febril e hemodinâmico. Devido anuria e insuficiência renal aguda, houve necessidade de iniciar terapia renal substitutiva (TRS) com hemodiálise indicada pela equipe da nefrologia. Permaneceu em unidade de terapia intensiva por 17 dias, com boa resposta ao tratamento clínico, mantendo apenas necessidade de TRS.
Em leito de enfermaria, evoluiu com delimitação de área de extensa necrose cutânea de do membro inferior direito (Imagem 1). Na ocasião, finalmente foi avaliado pela equipe cirúrgica, que indicou o desbridamento mecânico da lesão.
Durante desbridamento cirúrgico primário, foram observadas extensas áreas de necrose de epiderme, derme e fáscia muscular, com trombose de veias e artérias subcutâneas de pequeno calibre. Observava-se diversas áreas subcutâneas de lipólise e coleções de conteúdo purulento. Um extenso desbridamento foi realizado, atingindo espessura total de pele (epiderme e derme), além da fáscia muscular nas topografias afetadas, expondo o tecido muscular de fundo bem vascularizado (Imagem 2), hábil a promover granulação e a receber, posteriormente, enxertia cutânea.
Após o procedimento cirúrgico, seguiu-se com desbridamento químico utilizando papaína 4% em toda lesão, exceto em joelho, onde foi utilizado hidrogel em associação com alginato (Saf-gel®). A antibioticoterapia foi mantida com meropenem e vancomicina.
Simultaneamente à melhora progressiva da lesão, e, portanto, à redução da lise celular e citocinas inflamatórias, houve melhora clínica com cessação da febre e melhora da função renal, com suspensão da TRS.
33 dias após o desbridamento cirúrgico, foi realizado tratamento reconstrutivo da ferida operatória (Imagem 3), pela equipe de cirurgia plástica, com enxertia de pele parcial em malha após desbridamento de áreas com fibrina na periferia da lesão. O enxerto foi retirado da coxa ipsilateral à ferida com dermátomo elétrico e fenestrações manuais da lamina de pele parcial obtida foram realizadas. O enxerto foi fixado nas bordas da ferida com fio de Nylon 4-0 e curativo oclusivo tipo Brown foi realizado no centro da área receptora. Na área doadora, foi realizado curativo com óleo AGE (Dersani®) diariamente.
Após cinco dias foi observada boa pega dos enxertos. O paciente apresentou melhora clínica importante após tratamento cirúrgico da ferida, recebendo alta hospitalar em bom estado geral após 6 dias do último procedimento.
Em acompanhamento ambulatorial, 7 dias após a alta hospitalar, observou-se pega de 80% da área enxertada (Imagem 4). Cerca de 60 dias do procedimento paciente apresentava epitelização total das lesões, inclusive da área doadora, com reabilitação para suas atividades diárias (Imagem 5). Após mais de 1 ano da alta hospitalar, paciente retornou em acompanhamento ambulatorial, com boa cicatrização (Imagem 6) e queixa de dor leve local ao realizar esforços físicos, sendo indicada fisioterapia. O mesmo segue em acompanhamento ambulatorial com a equipe de Cirurgia Plástica.

IMAGEM 1 – Extensas areas necroticas em membro inferior direito
IMAGEM 2 – leito bem vascularizado obtido após desbridamento.
MAGEM 3 – Aspecto das lesões no momento da abordagem pela equipe de cirurgia plastica, cerca de 30 dias após desbridamento inicial
IMAGEM 4 – Boa pega dos enxernos no primeiro retorno ambulatorial.
IMAGEM 5 – Lesões com boa cicatrização após 60 dias da enxertia.
MAGEM 6 - Boa cicatrização após mais de 1 ano do tratamento cirúrgico.

Discussão

Feridas complexas, como a descrita no caso, ocorrem, na grande maioria das vezes, em pacientes com múltiplas comorbidades, como em imunossuprimidos, acamados, hipertensos, diabéticos, cardiopatas ou com doenças neoplásicas.6,12,14
As complicações agudas das infecções cutâneas são as mais temidas devido sua potencial letalidade, incluindo bacteremia, sepse, choque, endocardite e osteomielite.5,12 Já a principal complicação crônica das infecções de pele é a deformidade cicatricial da pele.8
O tratamento agressivo e precoce das feridas impacta positivamente na morbidade do paciente e reduz gastos hospitalares com cuidado com feridas.14 Estudos mostram que o principal tratamento para casos graves, em especial na presença de fasceíte necrotizante, é o desbridamento cirúrgico, associado, é claro, à antibioticoterapia.6,8 O tratamento pode ser concluído através de enxertos de pele ou retalhos.





































Conclusão

A abordagem multidisciplinar médica em conjunto com a equipe de enfermagem e comissão de curativos é fundamental para a otimização do cuidado com feridas complexas e reinserção do indivíduo no mercado de trabalho.
A evolução desfavorável das linfangites deve ser premeditada e tratada de forma imediata, muitas vezes envolvendo o tratamento cirúrgico, onde um desbridamento extenso envolvendo toda a espessura da lesão não deve ser postergado.

Referências

1. Belda Junior W. Tratado de Dermatologia. 2. ed. São Paulo: Editora Atheneu, 2014. 1 v. (Capítulo 1).
2. Mélega JM; Viterbo F; Mendes FH. Cirurgia plástica: os princípios e a atualidade. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2011. (Capítulo 5).
3. Belda Junior W. Tratado de Dermatologia. 2. ed. São Paulo: Editora Atheneu, 2014. 1 v. (Capítulo 53) ,1217-1219.
4. Souza CS. Infecções de tecidos moles - Erisipela. Celulite. Síndromes infecciosas mediadas por toxinas. Medicina 2003, 36: 351-356.
5. Brown BD, Hood Watson KL. Cellulitis. [Updated 2022 Aug 8]. In: StatPearls [Internet]. Treasure Island (FL): StatPearls Publishing; 2022 Jan-. Available from: https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK549770/
6. Tostes DG; Dias EA; Silva GAD; Cesar JJ. Streptococcus pyogenes E SUA RELAÇÃO COM A FASCIÍTE NECROSANTE. Acta Biologica Brasiliensia. 2020, 17-29.
7. Sousa LRM, et al. Prevalência de desbridamento cirúrgico de fasceíte necrotizante em hospital geral. Rev. Pre. Infec e Saúde, 2015, v. 1: 49-56.
8. Wolf H; Rusan M; Lambertsen K; Ovesen T. NECROTIZING FASCIITIS OF THE HEAD AND NECK. Wiley Online Library, Denmark, 2010, v. 1 :1592-1596.

Palavras Chave

FASCITE NECROSANTE/ENXERTO/RECONSTRUÇÃO

Arquivos

Área

Cirurgia Plástica

Categoria

Cirurgia Plástica

Instituições

HOSPITAL REGIONAL DE PRESIDENTE PRUDENTE - São Paulo - Brasil, HOSPITAL REGIONAL DE PRESIDENTE PRUDENTE - São Paulo - Brasil

Autores

MARIANA ZEITUNE DE OLIVEIRA PEREIRA, MARIA FERNANDA MINZONI MALATRASI RENA MALATRASI MINZONI , GUILHERME CAZAROTO GIRONDI GIRONDI, MARCELO DEPIERI ANDRADE DEPIERI , DENIS ALOISIO LOPES MEDINA MEDINA , EDUARDO PERSEU DE PAIVA PERSEU PAIVA