Dados do Trabalho
Título
INFECÇOES RELACIONADAS A ASSISTENCIA A SAUDE EM UNIDADE DE TRATAMENTO DE QUEIMADURAS ENTRE 2018 E 2022
Resumo
Pacientes vítimas de queimaduras graves sofrem um processo de imunossupressão e associado a perda da primeira linha de defesa, enfrentam aumento do risco de infecção e mortalidade.
Esta pesquisa consiste em análise retrospectiva das Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde (IRAS), segundo critérios definidos pelo CDC, em um Hospital Universitário da cidade de São Paulo, no período de 2018 a 2022.
546 pacientes foram internados no período analisado, dentre os quais foram notificadas 130 IRAS em 88 pacientes. A idade média desses pacientes foi de 41 anos, e a área de superfície corporal queimada total (TBSA) média foi de 20,4%, com queimaduras causadas principalmente por líquidos inflamáveis em 35 casos (39,7%), 22 traumas elétricos (25%) e 13 líquidos aquecidos (14,8%). Dentre as IRAS mais frequentes foram infecções de área queimada (67 casos, 51,5%), seguida por Infecção da corrente sanguínea associada a cateter venoso central (ICSAC – 18 infecções, 13,8%), Infecções do trato urinário com e sem cateter vesical de demora (ITU – 17 infecções, 13,1%), e Pneumonia associada à ventilação mecânica (PAV – 14 infecções, 10,7%). Foram identificados 141 microrganismos por cultura, sendo 101 (71,6%) bactérias gram-negativas; 30 (21,2%) por bactérias gram-positivas e 10 (7,1%) por fungos. Em 3 casos, o microrganismo não foi identificado. A mortalidade nesta série foi de 16,1% (12 casos).
Conclusão: Esta pesquisa demonstrou que as IRAS ocorreram principalmente devido a bactérias gram-negativas, em mais de 70% dos casos, diferente de outros estudos na literatura. Os Gram positivos foram responsáveis por 24% das infecções e os fungos por 7%. É importante atuar na prevenção das IRAS estimulando a remoção de dispositivos externos que representam um importante via de entrada aos microrganismos em pacientes imunocomprometidos. Ademais, é fundamental considerar a necessidade de tratamento precoce com cobertura de antibióticos gram-negativos ao iniciar a terapia empírica para esse perfil de paciente.
Introdução
No mundo, queimaduras representam uma das formas mais complexas de trauma e quando não associadas ao óbito, frequentemente estão associadas a danos físicos e psicológicos. O trauma por queimadura é um grande problema de saúde pública. Conhecer sua epidemiologia e os fatores etiológicos é de suma importância para o planejamento de medidas de prevenção e tratamento. (1)
A Organização Mundial de Saúde (OMS), estima que em 2019 mais de 100 mil mortes ocorreram devido a queimaduras no mundo, sendo que 90% dessas ocorreram em países de média ou baixa renda (2).
Nas primeiras horas após o trauma por queimadura, as feridas possuem baixa taxa de colonização devido a destruição de microrganismos da flora natural da pele durante o trauma, o que perdura cerca de 48h, caso não haja contaminação grosseira das feridas. Após as primeiras 48h, normalmente a ferida é colonizada por bactérias gram-positivas presentes na flora natural do tecido cutâneo adjacente à lesão. Com 4 a 5 dias da queimadura, a ferida se coloniza por bactérias Gram-negativas, que por sua vez com frequência apresentam resistência à múltiplas classes de antimicrobianos, são multirresistentes (MDR), presentes no ambiente hospitalar (3).
O Center for Disease and Control and Prevention (CDC) define infecção da área queimada quando ocorre mudança aguda das características do ferimento em relação ao aspecto ou coloração associada à identificação de microrganismos em exame de cultura da ferida ou hemocultura (4,5).
Além de serem mais susceptíveis às infecções, devido aos cuidados intensivos necessários, são pacientes com maior taxa de uso de dispositivos invasivos e com tempo prolongado de internação. Pacientes com queimaduras extensas, quando infectados, tem duas vezes mais chance de evoluir para óbito (3).
Infecções relacionadas à assistência à saúde (IRAS) passaram a ser a principal causa de morbidade e mortalidade entre os pacientes hospitalizados. A perda da barreira cutânea com a formação de feridas com leito úmido e tecido necrótico proporciona meio de cultura ideal para agentes infecciosos rapidamente colonizarem a lesão, infectá-las e invadirem o organismo, com elevado risco para evolução para sepse e eventualmente, óbito (5).
As IRAS são definidas como infecções adquiridas após a admissão do paciente ao serviço de saúde, e que se manifeste durante a internação ou após a alta, quando puder ser relacionada com a internação ou procedimentos hospitalares realizados durante o período de internação (BRASIL, 1998). Seus critérios diagnósticos vêm sendo constantemente atualizados e atualmente são definidos por critérios pelo CDC e, no Brasil, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária. (4,5)
Os principais tipos de IRAS são as infecções de corrente sanguínea (ICS), infecções do trato urinário (ITU), pneumonias associadas à ventilação mecânica (PAV) e especificamente para os pacientes vítimas de queimadura, as infecções de área queimada (IAQ). Cada tipo de IRAS, apresenta critérios definidos, cujo diagnóstico correto é fundamental para a notificação e produção do dado epidemiológico visando a formulação de estratégias de intervenção para prevenção e tratamento.
Objetivo
Descrever retrospectivamente, a incidência de IRAS, sua topografia, os agentes etiológicos, além de determinar taxa de mortalidade hospitalar nos pacientes vítimas de queimaduras no período 2018 a 2022.
Método
O projeto foi aprovado pela Comissão de Ética em Pesquisa (CEP) e consiste em um estudo primário, observacional, retrospectivo, com dados obtidos a partir do prontuário de pacientes internados em uma Unidade de Tratamento de Queimaduras (UTQ) de Hospital Universitário da cidade São Paulo no período de 2018 a 2022. Todos os pacientes aceitaram a participação da pesquisa com assinatura de TCLE e tinham 18 anos ou mais.
Resultado
Foram revisados os prontuários de 546 pacientes internados consecutivamente na UTQ, durante o período 2018 a 2022. Dentro deste grupo, 88 pacientes (16% do total de internações) apresentaram IRAS durante a internação. A taxa de mortalidade de todos os pacientes (546 pacientes), a qual foi de 4,9% (27 casos).
68 pacientes eram do sexo masculino (72%), com idade média de 41 anos (19-78 anos), com área de superfície corporal queimada total (TBSA) média de 20,4% (1-70%). O tempo médio de internação foi de 44 dias.
As queimaduras foram causadas principalmente por líquidos inflamáveis em 35 (39,7%), 22 (25%) por trauma elétrico e 13 (14,8%) casos por líquidos aquecidos. A taxa de mortalidade geral, considerando os 88 pacientes que apresentaram IRAS durante a internação foi de 16% (12 casos).
Durante o período analisado, foram notificados 130 episódios de IRAS. Quanto à topografia, as mais frequentes foram as Infecções de Área Queimada (IAQ – 67 infecções, 51,5%), Infecção da Corrente Sanguínea com e sem Cateter Venoso Central (ICS – 20 infecções, 22,7%), Infecções do Trato Urinário Associadas com e sem Cateter Vesical de Demora (ITU – 17 infecções, 19,3%), e Pneumonia associada à ventilação mecânica (PAV – 14 infecções, 15,9%) e outras infecções menos frequentes, pneumonias hospitalares e traqueobronquites (9 casos), osteomielites (3 casos) e infecção por clostridium (1 caso).
Foram identificados 141 microrganismos por cultura, sendo 101 (71,7%) bactérias gram-negativas; 30 (21,2%) bactérias gram-positivas e 10 (7,1%) por fungos. Em 3 casos (2,3%), o microrganismo não foi identificado. Das 130 IRAS notificadas, 13 casos foram causados por dois microrganismos (10%). Os demais casos (115 – 87,8%) apresentaram agente único identificado.
Considerando todas as IRAS, os agentes microbiológicos mais frequentes foram Acinetobacter spp presente em 34 culturas (24,1%), Pseudomonas spp. em 24 culturas (17%) e Klebsiella spp em 23 culturas (16,3%). Quanto às bactérias gram-positivas, houve predomínio de Enterococcus spp (9,2%) e Staphylococcus aureus (7%).
Considerando-se cada topografia de IRAS, nesta casuística ocorreram 67 casos de IAQ, com predomínio dos microrganismos gram-negativos, sendo 17 casos por Acinetobacter spp (25,3%), 13 por Klebsiella spp (19,4%) e 12 por Pseudomonas spp. (17,9%).
Nas Infecções de Corrente Sanguínea com e sem cateter venoso central, dos 20 casos notificados, 6 foram causados por Acinetobacter spp (30%), 4 por Staphylococcus spp (20%), 3 por Klebsiella spp (15%) e 3 por Enterococcus spp (15%).
Nas ITU-SVD, dos 17 casos descritos, houve predominância de Pseudomonas spp. (8 casos – 47%), seguido de Acinetobacter spp. (3 casos – 17,6%). Outros agentes foram menos frequentes, como Klebsiella spp (2 casos – 11,7%), Trichosporon spp (2 casos – 11,7%) e Enterococcus spp.
Nas PAV, dos 14 casos, 17 microrganismos foram identificados em cultura, sendo mais frequente o Acinetobacter spp (8 – 57,1%), Klebsiella spp (3 – 21,4%), Pseudomonas spp. (2 – 14,2%) e Staphylococcus spp (2 – 14,2%).
Discussão
A maioria dos estudos publicados na literatura apresentam dados agrupados referentes às IRAS e seu perfil microbiológico. Essa forma de apresentação dos dados dificulta a discussão ao passo que cada topografia de infecção apresenta sua particularidade e perfil microbiológico diferenciado.
Em 2002, Appelgren e colaboradores, na Suécia, foram os primeiros autores a descreverem na Europa, infecções ocorrendo em 230 pacientes vítimas de queimaduras, dos quais acometeram 36% dos casos, principalmente devido infecções de corrente sanguínea. (6).
No Brasil, em 2003, Santucci e colaboradores, descreveram uma experiencia de 7 anos de acompanhamento de um centro de queimaduras, envolvendo 320 pacientes, nos quais 55% (125) evoluíram com infecções, predominantemente por infecções de corrente sanguínea, sendo mais frequentes os agentes gram-positivos em todas as topografias, exceto nas infecções do trato urinário, com forte associação com a presença de cateteres intravasculares. (7)
Gragnani e colaboradores, em 2014, publicaram pesquisa realizada na mesma unidade na qual foi realizado o presente estudo, em um período de 10 anos anteriores a este. Os autores descreveram retrospectivamente o acompanhamento de 101 pacientes no intervalo de um ano. Os agentes mais prevalentes eram o Staphylococcus coagulase negativo, seguido de Pseudomonas aeruginosas e Acinetobacter baumanii, assim como em outros estudos presentes na literatura performados no mesmo período. Entretando, a descrição do perfil microbiológico ocorreu de maneira agrupada considerando todas as topografias de infecções, o que dificulta a comparação. Comparativamente, este estudo realizado na mesma UTQ, o perfil microbiológico se alterou, sendo predominantemente composto por microrganismos gram-negativos. (8)
Chen e colaboradores, publicaram em 2019, um estudo retrospectivo envolvendo 709 pacientes em Taiwan por 12 anos, nos quais 11,3% apresentaram IRAS durante a internação. Semelhante ao presente estudo, 50,7% dos casos foram causados por gram-negativos, seguido de 27,6% por gram-positivos e uma proporção maior de infecções por fungos (21,2%). (9)
Escadón-Vargas e colaboradores, 2020, avaliaram prospectivamente 165 pacientes, internados em unidade de tratamento de queimadura na Colombia, nos quais 27,9% desenvolveram ao menos uma IRAS, sobretudo devido a infecções de área queimada e de corrente sanguínea. Nessa casuística, a média de SCQ foi de 12% com mecanismo de trauma ocorrendo sobretudo por inflamáveis e eletricidade, e quanto ao perfil microbiológico predominando gram-positivos (S. aureus) seguido de Pseudomonas aeruginosa e Acinetobacter baumannii. (10)
Bourgi e colaboradores em 2020, avaliaram retrospectivamente 475 pacientes internados em UTQ no Libano em um período de 5 anos. 54% dos pacientes evoluíram com infecções durante a internação, apresentando risco de mortalidade 1,7 vezes maior. Assim como em outras pesquisas os microrganismos gram-positivos (mais de 50% por Staphylococcus aureus) foram os agentes predominantes, seguidos de Pseudomonas aeruginosa e Acinetobacter baumannii, diferente do presente estudo nos quais predominam os microrganismos gram-negativos. (11)
Conclusão
No presente estudo, diferentemente de outras supracitadas, os agentes microbiológicos mais frequentes foram os gram-negativos, em todos os tipos de infecção, predominando infecções por Acinetobacter spp.
As queimaduras representam uma doença multisistemica e multifatorial com tratamento clínico-cirúrgico complexo. São condições potencialmente mortais quando não tratadas de maneira eficaz e acertada. As infecções são de longe, fatores decisivos no desfecho dos casos de queimaduras graves, e sua ocorrência potencializa a gravidade e muitas vezes minimiza as chances de sobrevivência. Com o avanço dos cuidados e maior tempo de internação as IRAS se tornaram causas importantes de óbito nos pacientes vítimas de queimaduras.
Referências
(1) Greenhalgh DG, et al. Surviving Sepsis After Burn Campaign. Burns. 2023 Nov;49(7):1487-524.
(2) WHO, World Health Organization. Health care-associated infections Fact Sheet. 2014.
(3) Lachiewicz AM, et al. Bacterial Infections After Burn Injuries: Impact of Multidrug Resistance. Clin Infect Dis. 2017;65(12):2130-6.
(4) CDC/NHSN surveillance definitions for specific types of infections. 2023. CDC website.
(5) ANVISA, NT GVIMS/GGTES Nº 03/2023 Critérios diagnósticos das Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde (IRAS). 2023.
(6) Appelgren P, et al. A prospective study of infections in burn patients. Burns. 2002 Feb;28(1):39–46.
(7) Santucci SG, et al. Infections in a burn intensive care unit: experience of seven years. Journal of Hospital Infection. 2003 Jan;53(1):6–13
(8) Gragnani A, Ferreira LM, et al. Microbiological surveillance of burn unit of EPM/UNIFESP in São Paulo, Brazil. Revista Brasileira de Cirurgia Plástica. 2014 Jan 1;29(1).
(9) Chen YY, et al. Incidence and mortality of healthcare-associated infections in hospitalized patients with moderate to severe burns. Journal of Critical Care. 2019 Dec;54:185–90.
(10) Escandón-Vargas K, et al. Healthcare-associated infections in burn patients: Timeline and risk factors. Burns. 2020.
(11) Bourgi J, et al. Bacterial infection profile and predictors among patients admitted to a burn care center: A retrospective study. Burns. 2020. Dec;46(8):1968–76.
Palavras Chave
queimaduras; Infecções Relacionadas à Assistência à Saúde (IRAS); Microrganismos Multiresistentes
Arquivos
Área
Cirurgia Plástica
Categoria
Cirurgia Plástica
Instituições
UNIFESP - São Paulo - Brasil
Autores
MARCELO OLIVEIRA MOUR?O JUNIOR, ALFREDO GRAGNANI, THAYSA SOBRAL ANTONELLI, MARÍLIA FONSECA BAENINGER